O partir do regional para criar um olhar mais amplo sobre a produção audiovisual e dar reconhecimento aos filmes brasileiros em toda a sua diversidade

A noção de ciclos regionais é parte incontornável dos estudos historiográficos de cinema brasileiro há décadas, tornando-se, de fato, cânone entre pesquisadores. Limita-se essencialmente ao período silencioso da produção, entre os anos de 1914 e 1929, e abarca breves surtos de produção em diversas regiões do Brasil. Conforme as pesquisadoras Camila Fink e Cyntia Calhado registram no projeto “Caleidoscópio”, disponível na internet, na década de 20 a indústria cafeeira incentivou a modernização do país e a urbanização, o que permitiu que as tecnologias ampliassem o alcance para além dos grandes centros de Rio e São Paulo. Em cidades como Ouro Fino, Campinas, Guaranésia, Manaus, Recife e Cataguases, passaram a atuar pioneiros da realização de cinema, fossem figuras isoladas (como Humberto Mauro em Minas) ou grupos colaborativos (como acontecia na capital de Pernambuco).

Em sua proposição de “Territórios regionais, inquietações históricas”, a 14ª CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto problematizou a ideia de “ciclos regionais”, a partir de estudos mais recentes que contestam a terminologia e o recorte geográfico das pesquisas de cinema. Tais abordagens apontam um olhar viciado dos grandes centros para os estados e cidades distantes de Rio e São Paulo ao falarem em ciclos regionais. Na presença de 75 profissionais do audiovisual, acadêmicos, pesquisadores, historiadores, críticos de cinema e convidados internacionais, ao longo de 26 debates, o assunto transitou e se reconfigurou por diversas frentes em Ouro Preto, no 14º Seminário do Cinema Brasileiro: Fatos e Memória, no Encontro Nacional de Arquivos e Acervos Audiovisuais Brasileiros e no Encontro da Educação: XI Fórum da Rede Kino – Rede Latino-Americana de Educação, Cinema e Audiovisual. A linha de força principal foi a noção de territorialidade brasileira. Pensar o país em termos de região e território despontou como centro das conversas nas temáticas Histórica, Educação e Preservação que movem a CineOP.

Para Francis Vogner dos Reis, curador da Temática Histórica junto com Lila Foster, as cinematografias nascidas em territórios delimitados sempre se posicionaram como um tipo de confronto com as produções dos grandes centros, por seus realizadores se sentirem desterritorializados em relação a uma centralidade geográfica que é pura convenção – diretamente influenciada, é claro, por fatores determinantes de poder econômico. “Toda a história do cinema brasileiro tem ‘fragmentos regionais’ que vão constituindo uma cinematografia maior”, diz Francis.

O pesquisador Luís Alberto Rocha Melo defendeu a importância de se estudar a produção por recortes regionais, por acreditar que isso permite um olhar mais amplo para a totalidade dos núcleos e dá reconhecimento aos filmes de determinados espaços que poderiam ser omitidos ou nem sequer considerados na historiografia. Ele lembra que o próprio termo “ciclos regionais”, tão questionado, tem suas contradições. “O termo ‘ciclos regionais’ foi criação da própria historiografia. Ele não aparece em publicações da época em que os filmes eram feitos. Veio a posteriori, e a gente é que precisa lidar com ele”. Já o historiador Carlos Roberto de Souza, autor de uma dissertação de mestrado sobre a produção de cinema em Campinas nos primeiros anos do século 20, rechaça a terminologia, por considerá-la redutora e limitada a um determinado período. “Campinas sempre produziu filmes ao longo das décadas, então não tem como chamar de ‘ciclo’. Falar em ciclos ou acervos regionais tem o perigo de isolar os conteúdos e não universalizá-los”, diz Souza. O professor Lúcio Vilar, pesquisador na Paraíba, acredita que o recorte de ciclos regionais ajudou a dar visibilidade a quem foi estudado e reclama de que seu estado, que também teve produção pioneira na figura de Walfredo Rodrigues, entre outros, não aparece na historiografia clássica. “O Lúcio reivindica um lugar no ciclo”, brincou Rocha Melo.

Uma extensão do “regionalismo” no audiovisual brasileiro apareceu nas discussões sobre os coletivos e as pequenas produtoras que se formaram nos anos 1980 e 90 e foram foco também das conversas e exibições na CineOP em 2019. Esses núcleos de produção, que se originaram como encontros entre cinéfilos e terminaram por realizar e difundir obras audiovisuais de feitura própria, tiveram grande importância em Porto Alegre (Casa de Cinema), Piauí (Grupo Mel de Abelha) e Rio de Janeiro (Corcina), além de iniciativas individuais no Paraná e em Brasília. Parte dos filmes surgidos desses núcleos estiveram na programação da mostra, como “Aluminosa Espera do Apocalipse” (Fernando Severo, Rui Vezzaro e Peter Lorenzo), “O Pagode de Amarante” (Dácia Ibiapina), “Inverno” (Carlos Gerbase) e “Espaço Marginal” (Luís Carlos Sales).

Para o cineasta Fernando Severo, parte dessa efervescência entre o final dos anos 1970 e meados dos 90 se deveu ao Super-8, com sua praticidade e agilidade de captação de imagens. Ele lamentou que, atualmente, o formato seja marginalizado. “Eu reivindico sempre e é uma luta minha que o Super-8 seja catalogado e melhor estudado, porque muita coisa importante foi feita com ele”, defende. O professor Rubens Machado, que cataloga a produção de Super-8 na USP, reforça: “Esses filmes precisam ser mostrados, não podem ficar escondidos nem serem considerados menos importantes”. Homenageado na CineOP deste ano, o cineasta baiano Edgard Navarro fez alguns de seus trabalhos mais emblemáticos com essa bitola, casos de “O Rei do Cagaço” (1977) e “Lin e Katazan” (1979).

PRESERVANDO AS REGIÕES

As conversas sobre o resgate do Super-8 foi ao encontro da Temática Preservação, que uniu os participantes em torno da necessidade de se olhar para os arquivos com ainda mais acuidade. Num momento recente tão delicado da política brasileira, no qual as instituições culturais estão sendo colocadas em xeque, o alerta é de que os acervos não podem ser desvalorizados ou inutilizados. Em carta redigida no final da CineOP, a ABPA (Associação Brasileira de Preservação Audiovisual) chamou atenção para “o risco iminente de destruição do patrimônio audiovisual brasileiro” provocado pelo “desmonte do Estado” na extinção do Ministério da Cultura e nos cortes de bolsas de pesquisas e fomento para capacitação profissional. “Encorajamos as ações e políticas regionais de preservação audiovisual que considerem a diversidade”, registra o documento.

Definido pelos curadores Ines Aisengart e José Quental, o tema em 2019 foi “A regionalização e a formação do patrimônio audiovisual brasileiro”, com propósito de explicitar os desafios enfrentados por instituições de salvaguarda que não estão no centro das ações públicas federais. Instituições privadas ou ligadas ao Estado, iniciativas particulares, plataformas físicas ou virtuais: trafegando por todas essas frentes, as discussões do Encontro de Arquivos apresentaram cases e experiências em diversas cidades do país, com suas particularidades e contextos regionais.

Debate este fundamental também a cineastas que se utilizam de materiais de arquivo para seus filmes, como Cláudia Nunes, diretora (junto com Érico Rassi) do média “Resplendor”, exibido na mostra. Ela atenta para a necessidade urgente de ações tanto de preservação quanto de mediação de acesso aos materiais guardados. Cláudia conta que realizadores costumam enfrentar obstáculos burocráticos, familiares e financeiros na busca pelos acervos. “A gente às vezes tem dificuldade com quem detém as imagens e também com empresas que cobram muito caro pela utilização de poucos segundos, às vezes com valores que permitiriam fazer um outro filme”, diz ela. Alguns casos de sucesso foram apresentados, como o Canal Thomaz Farkas, capitaneado pelo neto do produtor, Tom Farkas. “Foi preciso atualizarmos os suportes digitais do acervo para evitar defasagem e consequente perda do acesso”, conta, em relação ao cuidado que precisou ter na preservação de uma série de filmes realizados entre o final dos anos 1960 e meados dos 70.

A presença da francesa Cécile Petit-Vallaud, diretora da Cinemateca da Bretanha, ampliou o entendimento da preservação como uma preocupação mundial. Ela falou sobre a experiência de cuidar de um dos acervos mais importantes da Europa e das iniciativas de colocar o material à mostra, em projetos de difusão - entre eles, a disponibilização de 6.000 filmes através de plataformas digitais. No caso do Brasil, que ainda encontra dificuldades para ampliar o acesso a longas, médias, curtas e materiais de arquivo, algumas iniciativas foram mostradas, como o Spcine Play, que mantém em streaming gratuito dezenas de filmes brasileiros. Para Hernani Heffner, conservador-chefe da Cinemateca do MAM-RJ, a difusão no país precisa encarar ao menos dois desafios: “Um é o elitismo do cânone, que tende a repetir os mesmos tipos de filmes e realizadores já legitimados pela história, deixando à margem trabalhos importantes que não seguiram os mesmos tipos de padrões legitimados; outro é a propalada ‘morte do cinema’, simbolizada pelas infinitas novas possibilidades de consumo do audiovisual em tempos de streaming e plataformas móveis”.

O entendimento é de que a regionalização, novamente no centro dos debates, é um caminho que depende muito das formas de difusão, para que filmes e arquivos sejam conhecidos para além de seus territórios e para a compreensão de seus recortes de tempo e espaço, de história e geografia. Órgãos como o MIS-PR (Museu da Imagem e do Som do Paraná), MIS-Campinas, Cinemateca Capitólio (Porto Alegre), além do próprio MAM-RJ, apresentaram suas formas de trabalho e as tentativas de atraírem públicos renovados. A conclusão, ao menos por ora, foi a de que, apesar do péssimo momento pelo qual passa o Brasil no cenário econômico e cultural, é preciso acreditar no interesse do público em potencial. “Você precisa criar novas experiências, fazer o espectador querer ir conhecer aquilo que você está mostrando”, acredita Marcus Mello, um dos idealizadores da Cinemateca Capitólio. Por sua vez, o cineasta mineiro Sylvio Lanna defendeu o que chama de “difusão caligráfica”, que ele define como “pequenos gestos de visibilidade” que se aproveitam das novas tecnologias. “Hoje você pega isso aqui (telefone celular) e faz o seu filminho e mostra o seu filminho. Cada um de nós tem poder de fazer a sua difusão dentro do seu contexto”, afirma.

RETOMADA DAS NARRATIVAS

Na curadoria de Adriana Fresquet e Clarisse Alvarenga para a Temática Educação, o enfoque foi “Mulheres: Terras e Movimentos”, com objetivo de refletir sobre a atuação das mulheres no cinema e no ensino tendo como ponto de partida o vínculo com a terra, com os territórios e com espaços que elas ocupam na sociedade. Naturalmente, o recorte perpassou questões como machismo, discriminação e legitimidade de fala. A proposta de ouvir experiências de realizadoras e professoras negras e indígenas amplificou o número de vozes e a singularidade do que era relatado. É o caso da professora e ativista Célia Xakriabá, que exaltou a memória da tradição indígena como elemento fundamental a ser resgatado pela produção audiovisual brasileira. “As narrativas indígenas precisam ser tomadas por seus povos. É importante ocupar os espaços de expressão, historicamente dominadoS pelo homem branco, e enfrentar uma sociedade marcada pela opressão por parte das figuras históricas de poder”, afirma.

Célia defende o que chama de “reterritorialização”, que seria a retomada de territórios (físicos e simbólicos) apropriados pela colonização. Trata-se de um movimento importante da comunidade indígena em tempos de luta contra um governo federal que opera em prol da tomada à força de territórios sagrados e da eliminação de povos originários. “Precisamos pensar na ‘indigenização’ da tela, para que tenhamos pluralidade e diversidade tanto em quem está do lado de lá da cena quanto especialmente em quem está no domínio das ferramentas, segurando a câmera”.

Para chegar a esse cenário, a formação audiovisual se torna essencial, empoderando o potencial realizador indígena, como frisa a cineasta Mari Corrêa, diretora do Instituto Catitu, ONG de fomento a projetos culturais e ambientais junto às comunidades indígenas. “O sentido real do nosso trabalho é o de que, mais importante que o resultado, é o processo”, destaca. Como Mari, a diretora e professora Pará Yxapy, da aldeia Ko’enju, que iniciou seus estudos em realização cinematográfica nas oficinas do Vídeo nas Aldeias em 2007, no Rio Grande do Sul, reforçou a importância de dominar a técnica e a estética. Logo que aprendeu a manipular câmeras, Pará decidiu se apropriar da própria narrativa. Durante sua fala num seminário na CineOP, ela se dirigiu à plateia e disse: “A presença de uma cineasta indígena é algo muito novo pra vocês. Trabalhar com cinema é muito importante pra gente, para fortalecer nossa cultura e nossa visão”.

Retomar o discurso e levá-lo ao mundo surgiu como perspectiva fundamental do sentimento transmitido pelos debates e encontros na CineOP. Pela perspectiva da cultura negra, Makota Kidoiale, coordenadora do Projeto Kizomba, que busca difundir a cultura africana, disse que “o cinema deve nos mostrar e dar visibilidade ao nosso modo de vida, que reproduz cultura, conhecimento, saúde, cuidados e natureza”. A percepção de que as vozes silenciadas por décadas de opressão precisam ter espaço de revigoramento foi defendida também pelo veterano diretor paraibano Vladimir Carvalho, 84 anos. Ele relembrou a violência na qual a sociedade brasileira foi estabelecida historicamente e que as comunidades oprimidas devem tomar parte no imaginário e consciência de nossas imagens.

Para a professora Shirley Miranda, é importante que se compreendam as perspectivas decoloniais, no intuito de que o imaginário das diversas comunidades que compõem a sociedade brasileira possa ser reapropriado ao dar voz a quem até então era tratado como margem pelas instâncias de poder, marcadamente eurocêntricas e preconceituosas. “O enquadramento (do cinema) pode servir para colocar certas vidas em destaque e dar alguma dignidade possível a humanidades negadas”, comenta Shirley. “Quais são as vidas que precisam do perigo para terem a imaginação despertada?”. Na “Carta de Ouro Preto”, redigida pela Rede Kino, professores e professoras renovaram o compromisso com a defesa intransigente da democracia e dos direitos civis, “reafirmando a potência das diferenças na diversidade e o papel do cinema, do audiovisual e da educação no combate aos sistemas que sustentam as opressões e as desigualdades”.

Do olhar amplo para os arquivos no que eles podem oferecer a uma melhor apreensão do presente até o entendimento de que toda experiência tem importância na constituição de formas sensíveis de ver e viver, a 14a CineOP trafegou por questões complexas em sua edição de 2019. Buscou respostas, mas acima de tudo provocou perguntas, para deixá-las reverberando daqui adiante, no intuito de que as discussões avancem. Quem sabe uma sociedade mais equilibrada ascenda tendo por base a educação e o sentido histórico das coisas. As ideias e as ações estão em andamento.