Em 22a edição, evento cumpre sua vocação de expandir a experiência do cinema dentro e fora das telas e honrar o compromisso de um evento cultural de grande importância econômica e social

O ano de 2019 foi de reafirmação da Mostra de Cinema de Tiradentes como evento de importância nacional e da defesa da cultura como fundamental no desenvolvimento de um país. Equivalendo atualmente a 2,64% do PIB brasileiro, empregando diretamente cerca de um milhão de pessoas, contratando cerca de 200 mil empresas e instituições envolvidas e gerando R$ 10,5 bilhões de impostos diretos (segundo dados do Ministério da Cultura divulgados no ano passado), a economia da cultura é uma das áreas de maior efervescência no crescimento nacional.

Em especial no caso do cinema, um estudo da Ancine divulgado em 2015 revelou que o valor gerado só pelo setor audiovisual brasileiro teve aumento de 65,8% entre 2007 e 2013, uma expansão de 8,8% ao ano. Citando o IBGE, o relatório aponta que as atividades econômicas do audiovisual foram responsáveis por uma geração de R$ 22,2 bilhões em 2013 (em 2007, foram R$ 8,7 bilhões).

Projetos realizados pela Lei Rouanet, importante instrumento de fomento à cultura, tiveram impacto na economia brasileira de mais de R$ 2 bilhões em 2018, conforme o mesmo estudo do Ministério da Cultura. Um total de 3.197 projetos culturais captaram R$ 1,288 bilhão em recursos, tanto de pessoas físicas quanto jurídicas. Foi o terceiro maior montante de captação nos 27 anos de existência da lei, cuja taxa de incentivos fiscais, em relação a todos os incentivos concedidos no país em diversos os setores da economia, representa apenas 0,64% do total.

Uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas atestou o impacto direto (R$ 31 bilhões) e indireto (R$ 18,5 bilhões) de projetos via Lei Rouanet entre 1993 e 2018. Esse valor de quase R$ 50 bilhões é muito maior do que o valor diretamente investido pelos incentivos fiscais (R$ 17,6 bilhões), mostrando o fôlego do setor na multiplicação econômica – ainda mais se considerarmos que a renúncia fiscal via Rouanet é muito baixa se comparada a outros setores que consomem bem mais desse mecanismo. Outra pesquisa recente aponta que, de todos os projetos financiados pela Rounaet, aproximadamente 70% são de até R$ 500 mil.

“É importante ter um entendimento de que é a indústria do entretenimento a que mais cresce no mundo, gera empregos, renda e oportunidades”, diz Raquel Hallak, coordenadora da Mostra Tiradentes e diretora da Universo Produção.

PELOS CORPOS DO CINEMA

O corpo na tela, o corpo no palco, o corpo na plateia. Corpos cênicos e corpos-cinema, corpos da realidade e corpos da ficção. Na 22a Mostra de Cinema de Tiradentes, a temática dos “Corpos Adiante” explodiu para além dos filmes, dos debates e dos encontros. Ela impregnou as energias, as trocas, os fluxos, num contínuo que contaminou os nove dias de evento na cidade histórica mineira

Proposta pelo coordenador curatorial Cléber Eduardo, a ideia se expandiu e se renovou. “Antes do corpo no cinema, porém, o corpo está em todo lugar”, já adiantava o curador desde a proposta. “Se estes corpos como pluralidade são em parte homogeneizados pelo capital investido, consumido e lucrado com suas superfícies e com seus organismos, estes mesmos corpos também são as matérias a partir das quais se travam alguns dos principais debates e embates em torno de identidades em geral, das perseguições e dos cultivos das origens étnicas/raciais às transformações, manutenções e ampliações das origens de gênero”. A curadoria deste ano na Mostra contou com a equipe formada por Lila Foster e Victor Guimarães (longas-metragens), Pedro Maciel Guimarães, Tatiana Carvalho Costa e Camila Vieira (curtas-metragens).

Com objetivo de pensar a questão em relação a outras manifestações artísticas, a Mostra levou a Tiradentes profissionais de artes cênicas, artes visuais, música e literatura para conversarem sobre a temática ao longo de toda a semana. Entre uma mesa e outra, todos e todas levantaram pontos fundamentais. Para a pesquisadora Amaranta César, “a dinâmica entre reconhecimento do corpo como algo que nos ultrapassa significa reconhecer estruturas opressoras e limitadoras históricas. O cinema contribuiu, ao longo do tempo, como agente de apagamento de corpos ou de reinvenção e reapropriação”.

Também crítica e pesquisadora Luciana Romagnolli aponta que a consciência do corpo como presença é uma diferença essencial, por exemplo, entre teatro e cinema: num, há a afetação direta; no outro, a intermediação tecnológica, ou “tecnovivial”, como ela afirma, convocando um conceito do professor argentino Jorge Dubatti. “Como os corpos se relacionam no teatro e no cinema com o que já existe? E com o que não existe?”, pergunta.

A questão do que é real ou ficcional voltou a aparecer ao longo das conversas e dos filmes da Mostra, porém sem enveredar pela já batida discussão sobre o que é ficção ou documentário. Enfim as fronteiras estão se rachando, e muitos espectadores hoje deixam se importar com isso para mergulharem nas propostas estéticas e narrativas de filmes difíceis de categorizar, como “Inferninho” (Guto Parente e Pedro Diógenes), “Vermelha” (Getúlio Ribeiro), “A Rosa Azul de Novallis” (Gustavo Vinagre e Rodrigo Carneiro) e “Calypso” (Rodrigo Lima e Lucas Parente), entre outros. No caso de “Inferninho”, o crítico João Dumans elogia o uso do melodrama como catalisador de emoções e a chave para rachar as estruturas de gênero do filme. “O movimento é o de dar ao melodrama a possibilidade de aqueles personagens se expressarem. Os diretores não fazem isso só como referência, e sim levam a sério para a construção dos sentimentos”.

Os limites também foram testados em “A Rosa Azul de Novallis”, no qual o ator Marcelo Diorio se expõe como personagem de si mesmo e rememora o passado e o próprio presente. “Gosto de me concentrar numa única pessoa a ser filmada e me entregar ao risco. Faço meus filmes num curto espaço de tempo e com chances de dar errado, mas eles funcionam justamente pela capacidade das pessoas que eu filmo de serem outras pessoas semelhantes a elas mesmas”, conta o codiretor Gustavo Vinagre.

PERMANÊNCIAS

Toda a discussão sobre identidades e presenças inevitavelmente chegou a questões caras da sociedade brasileira nos últimos anos: raça, gênero, violência, opressão e o papel do Estado na vida econômica e social de indivíduos plurais. Na tela, filmes como “Temporada” (André Novais Oliveira), “Tremor Iê” (Lívia de Paiva e Elena Meirelles), “A Rainha Nzinga Chegou” e “Negrum3” (Diego Paulino) pautaram muitas das conversas a partir da importância desses assuntos. “Quando digo que tudo é para todo mundo, é porque é. O caminho é longo, mas ele é nosso também, e uma hora ele chega”, diz Isabel Casimira Gasparino. Em seu filme, ela viaja à África em busca de suas raízes e das origens da Rainha Nzinga. “Ir ao Congo foi um renascimento e uma reafirmação de que tudo que eu tinha aprendido sobre meus antepassados era verdadeiro”, exalta. Sentimento similar pôde ser visto no curta “NoirBLUE – Deslocamentos de uma Dança”, de Ana Pi, quando ela narra que, ao desembarcar na África pela primeira vez, ouviu de um agente de migração que ela estava em casa. “Bem-vinda de volta”, disse ele à diretora.

Ao falar sobre o curta “Negrum3”, o diretor Diego Paulino o define como “um ensaio sobre negritude, viadagem e aspirações espaciais dos filhos da diáspora”. Muito aplaudido na sessão do Cine-Tenda, o filme tem pegada alto astral, cores explosivas e muita música, além de forte carga política e de denúncia. “‘Negrum3’” surgiu a partir da raiva. Eu quis transformar a minha raiva em ação. Um corpo negro, para se movimentar, precisa de uma espécie de armadura para sobreviver às microagressões da sociedade. Então minha solução, com o filme, foi ser o mais sincero possível”, diz Diego, que trabalhou com equipe de produção preponderantemente formada por pessoas negras no intuito de permitir que o mergulho naqueles sentimentos em tela fosse o mais pleno possível. “Se você está disposto a criar uma nova narrativa, você também precisa estar disposto a derrubar a pirâmide social da exploração atrás das câmeras. Filmes vão e processos ficam”.

Sempre elogiada por sua coesão de pensamento e atitude diante da arte – na qual se enveredou no começo dos anos 2000, desenvolvendo uma bem-sucedida carreira no teatro -, Grace Passô, agora também diretora (estreou o curta-metragem “Vaga Carne” na mostra, codirigido por Ricardo Alves Jr) disse que sua coerência veio vindo naturalmente ao longo dos anos, tendo começado a partir de premissas que hoje ela questiona. “Eu queria escrever teatro e me preocupava em construir textos para serem publicados. Isso só ficou no desejo, porque o caminho desses textos foi exatamente o contrário”, relembra. “Eu tinha uma noção idealizada do texto teatral, de que talvez, para mostrar a potência e os valores, eu precisa torná-lo independente da cena. Mas o tempo passou e desmistifiquei essa premissa. Depois que você cria uma obra, ela fica maior que você. São voos que a gente não tem a dimensão deles, é de cada um”. Exemplo para muitos realizadores e realizadoras presentes em Tiradentes, Grace protagonizou na mostra o longa-metragem “Temporada”, no qual é dirigida por André Novais, que a chamou de “força da natureza”.

Algumas presenças internacionais em Tiradentes identificaram a vitalidade desse cinema brasileiro independente que não quer se deixar domar e que ocupa as telas com os corpos e o tecido sensível de realidades que circundam diretores, diretoras, atores e atrizes. Para o crítico argentino Roger Koza, essa produção permite que se conheça a fundo o estado de espírito (político e social) do Brasil no momento em que ele é produzido, algo sem equivalência na Argentina. “O cinema ficcional argentino transcorre em outro mundo, em outra dimensão, um mundo de elevação espiritual, mas você não consegue ver como está a Argentina por sua ficção. No cinema brasileiro é diferente, você é capaz de sentir o que se passa no país, e isso pra mim é muito mais potente”, diz.

Esse estado de permanente atenção ao contexto histórico do presente e do passado foi apontado por Lívia de Paiva, de “Tremor Iê”, como um dos estímulos para o filme. O longa foi filmado no início do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, e ela e a codiretora Elena Meirelles se perguntaram, diante do resultado, se estavam prevendo algo distópico que viria a acontecer pouco tempo depois. “Não é que antecipamos o que seria do país. Na verdade, os retrocessos já estavam em andamento ali, naquele presente”, afirma Elena. Bruno Ramos, do curta-metragem “Estado de Neblina”, também se disse impregnado da desilusão política no Brasil para chegar à atmosfera de seu filme. “Toda vez que penso na morte da Marielle Franco, eu lembro o motivo pelo qual eu resolvi fazer o filme: para expressar minha sensação de mal-estar, de fim do mundo”, afirma o cineasta.

É por essa teia de gentes tão distintas que os Corpos Adiante se fixam, tanto sob o olhar do espectador de cinema quanto pela visão de todo um país e de um mundo, na inevitabilidade e constatação de suas existências e na luta para que elas permaneçam. Numa semana em que o noticiário nacional se viu tomado de revelações, tragédias e muita lama, a 22a Mostra de Cinema de Tiradentes se integrou à batalha diária desses corpos em movimento, que não querem, não podem e não vão parar. A cultura tem papel imprescindível nesse processo.

SOBRE O EVENTO
22ª MOSTRA DE CINEMA DE TIRADENTES

PLATAFORMA DE LANÇAMENTO DO CINEMA BRASILEIRO

Considerada a maior manifestação do cinema brasileiro contemporâneo em formação, reflexão, exibição e difusão. Busca refletir e debater, em edições anuais, o que há de mais destacado e promissor na nova produção audiovisual brasileira, em longas e curtas, em qualquer gênero e em formato digital. A programação é oferecida gratuitamente ao público e inclui exibição de filmes brasileiros (longas e curtas), pré-estreias, homenagens, debates, encontros com a crítica, o diretor e o público, oficinas, seminário, mostrinha de Cinema, atrações artísticas.

TODA PROGRAMAÇÃO É OFERECIDA GRATUITAMENTE AO PÚBLICO.

Serviço
 22ª MOSTRA DE CINEMA DE TIRADENTES | 18 a 26 de janeiro de 2019 

LEI FEDERAL DE INCENTIVO À CULTURA

LEI ESTADUAL DE INCENTIVO À CULTURA

Patrocínio:  TAESA, KINEA/Itaú, CSN, CBMM, CEMIG, COPASA|GOVERNO DE MINAS GERAIS

Parceria Cultural: SESC em Minas

Fomento: CODEMGE|GOVERNO DE MINAS GERAIS

Apoio: ACADEMIA INTERNACIONAL DE CINEMA, SESI FIEMG, OI, INSTITUTO UNIVERSO CULTURAL, TRES, WALS CERVEJA ARTE, MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, SENAC, CINEMA DO BRASIL, DOT, MISTIKA, CTAV, NAYMAR, CINECOLOR, GLOBO MINAS, CANAL BRASIL, EMBAIXADA DA FRANÇA, ETC FILMES, NOVA ERA SILICON, POLÍCIA MILITAR, PREFEITURA DE TIRADENTE E CENTRO CULTURAL AIMORÉS.

Incentivo: SECRETARIA DE ESTADO DE CULTURA| MINAS GERAIS

Idealização e realização: UNIVERSO PRODUÇÃO

MINISTÉRIO DA CIDADANIA | GOVERNO FEDERAL

 

LOCAIS DE REALIZAÇÃO DO EVENTO
 

Centro Cultural Sesiminas Yves Alves   

Largo das Fôrras 

Largo da Rodoviária

Escola Estadual Basílio da Gama