Entre debates, encontros e exibição de filmes, as atividades da Mostra de Cinema de Ouro Preto reforçaram uma rede de ações e reflexões que começa na educação audiovisual, passa pela construção de imaginários expressivos e se completa na importância da manutenção de acervos
No cinema brasileiro contemporâneo, a ideia de “vanguarda” pode soar ironicamente arriscada. Isso porque, em tempos de ruptura político-institucional e de descontinuidade de ações estratégicas, torna-se cada vez mais difícil produzir o que quer que seja – e mexer com o experimentalismo parece, muitas vezes, uma saudável provocação ao status quo. Foi de situação similar (de ruptura) que surgiu, no Brasil, o que a CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto chamou este ano de “vanguarda tropical”. O conceito foi discutido ao longo dos seis dias de evento, à luz dos atuais estudos em torno da produção artística brasileira pós-golpe militar de 1964 e de noções contemporâneas de representação e estética.
A educação e a preservação – que completa, com a história, o eixo central da CineOP – também vieram em 2018 com questões urgentes: na primeira, a importância de validar a escola pública como espaço para produção de “Memórias do Futuro”; na segunda, a presença das novas tecnologias nos processos de conservação audiovisual. O 13º Seminário do Cinema Brasileiro: Fatos e Memória, o Encontro Nacional de Arquivos e Acervos Audiovisuais Brasileiros e o Encontro da Educação: X Fórum da Rede Kino – Rede Latino-Americana de Educação, Cinema e Audiovisual conjugaram estas discussões. Ao longo de 20 debates e presença de 79 convidados, entre profissionais do audiovisual, acadêmicos, pesquisadores, historiadores, críticos, curadores e preservadores, incluindo seis convidados de quatro países (França, Espanha, EUA e Uruguai), foram levadas às mesas as Fronteiras do Patrimônio Audiovisual em Diálogo com a História, Educação a as Artes.
Se em 2017 a sensação ao longo do Seminário era de desilusão (devido aos constantes golpes que os setores culturais vêm sofrendo em âmbito governamental e a demora na implantação de um Plano Nacional de Preservação, elaborado na CineOP ao longo da última década), em 2018 a impressão geral era de que o principal caminho é a resistência – o que pareceu fazer diálogo com um dos curtas-metragens da Mostra Histórica, “Das Ruínas a Rexistência” (2007), de Carlos Adriano.
O cineasta paulista, aliás, foi um dos exaltaram a importância das vanguardas artísticas a partir de sua própria afirmação, e não da negação ou ressentimento, como é de praxe em movimentos que surgem como maneiras de superar os antecessores. “O conceito de ‘vanguarda’ aqui se define por uma negativa, mesmo sendo um movimento positivo. Isso não é muito saudável, seria melhor pensarmos o que há de contribuição, e não de negação”, diz Carlos Adriano. Ele afirma ser sintomático que a Semana de Arte Moderna de 1922, considerada ação de vanguarda, não teve presença do cinema – que já existia há mais de duas décadas. “Não temos, no Brasil, uma tradição de cinema experimental. Se pensarmos em antecedentes mais remotos, os possíveis fundadores da nossa vanguarda no audiovisual seriam São Paulo – Sinfonia de uma metrópole (1929) e Limite (1931). É difícil termos uma arte experimental e autônoma, pois nossa condição subdesenvolvida atrapalha quem busca se envolver plenamente em uma investigação mais experimental”.
Para a pesquisadora Ivana Bentes, mesmo a vanguarda setentista, já em si um movimento de exceção dentro de padrões previamente estabelecidos, tinha estéticas underground que corriam por fora, como ficou exemplificado no filme de abertura da CineOP, Sem Essa, Aranha (1970), de Rogério Sganzerla. O longa-metragem tem como uma das protagonistas a atriz Maria Gladys, homenageada desta edição e que resume - no corpo, nas atuações e na postura pessoal - muito do que se celebrou por aqui em 2018.
Ivana Bentes identifica movimento similar a esse underground no Brasil do século XXI. “Existia, no tropicalismo, a tentativa de ‘desinvenção’ do país e de seus mitos fundadores. Nos últimos 13 anos, passamos novamente por uma ‘mutação antropológica’ que deslocou mais uma vez os nossos mitos fundadores”, explica Ivana. Ela aponta as discussões sobre miscigenação, racismo, machismo e representatividade como centrais no atual momento. “Tem acontecido a ascensão de corpos periféricos e a luta contra a manutenção de privilégios, o que se assemelha a alguns movimentos dos anos 1960”.
A dupla de curadoria da Temática História, Francis Vogner e Lila Foster, procuraram delimitar a escolha da Vanguarda Tropical como um recorte, não necessariamente um movimento. “É natural que, ao falarmos essa expressão, venha à nossa mente o Tropicalismo. Eles dialogam, claro, mas são manifestações distintas”, afirma Francis. Para Lila, “a historiografia se vale de métodos e coordenadas, mas também de presença e do conhecimento sobre esses filmes”, o que dificulta, em muito, o entendimento de todo o contexto histórico, já que vários títulos daquela época encontram-se perdidos ou indisponíveis para exibição. Trabalha-se com uma materialidade perdida, que muitas vezes depende de memórias, testemunhos da época ou registros sem acesso à fonte primária.
OLHAR PARA O FUTURO
Ao se falar de fontes, leva-se o debate para a preservação, aspecto central em todos os debates e nos corredores da CineOP. Sem preservação, não há memória física do audiovisual; sem essa memória, os estudos sobre o passado não avançam - eis uma conclusão possível dos Encontros de Preservação ao longo da semana. Mesmo a curadoria da Temática História assumiu ter tido dificuldades de chegar a alguns títulos programados, devido à falta de conservação adequada a materiais muitas vezes tratados como de segunda ordem. Betty Lacerda, coordenadora geral do Centro de Documentação e de Estudos da História Brasileira (Cehibra), da Fundação Joaquim Nabuco, afirma que a existência de arquivos e instituições de preservação ficou muito tímida até a década de 1970 no Brasil. “Foi só nessa época que começaram a surgir acervos estaduais e municipais, tudo ainda bastante precário até hoje. Falta diálogo e estrutura”. Ela contou, durante a CineOP, ter feito intensa pesquisa sobre cinematecas e acervos de estados normalmente fora das conversas sobre o assunto, como Ceará, Tocantins, Maranhão, Pernambuco e Rondônia. “Quem tem acervo tem que ter uma política de gestão do material e que passe pela aquisição, preservação e descarte”.
Um exemplo do que Betty se referia estava no que disse Denise Gonzaga, diretora do acervo da Associação Cultural Cinemateca Catarinense. Ela conta que os cursos de cinema de Santa Catarina não possuem matérias relacionadas a acervo nem à preservação. “Outros cursos que poderiam tratar disso, como museologia, falam de acervos num sentido mais geral, mas nada especificamente sobre o audiovisual”. Case de restauração brasileira deste ano, o Acervo Capixaba serviu de ótimo exemplo de uma política quase de guerrilha de preservação. Fruto do trabalho conjunto de duas produtoras (a Pique-Bandeira e a Afinal Filmes), o resgate dos documentários de Orlando Bomfim, netto, que registrou o Espírito Santo dos anos 1970, pôde ser assistido pelas plateias de Ouro Preto.
A ausência de uma educação formal para o conhecimento de patrimônio e preservação foi mote em vários encontros. Isso passa especialmente pelo âmbito público, com a falta de atenção dos governos em relação ao tema. Restam, muitas vezes, os esforços de ONGs e OSs (sem vínculos diretos com o Executivo). Laura Bezerra, professora adjunta do Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas da UFRB/BA e integrante da ABPA/BA, diz ser importante separar as diferenças entre o estatal e o público. “A lei brasileira 9637/98 [que dispõe sobre a qualificação de entidades como organizações sociais e a criação do Programa Nacional de Publicização] é muito controversa e foi questionada pela classe artística desde a promulgação, apesar da agilidade que ela trouxe para alguns processos. É um modelo de fragilidade e riscos, vantagens e benefícios, mas que dificulta o acompanhamento dos valores gastos”.
Para tentar potencializar de alguma forma os processos de preservação e arquivamento, o setor privado tem se mobilizado, percebendo o grande mercado em potencial. Este ano, a CineOP levou à mostra representantes de diversas empresas que têm se dedicado a elaborar planos, processos e tecnologias que permitam mais garantia de que materiais audiovisuais permaneçam em bom estado por tempos indeterminados. Um dos casos mais notáveis e precursores é o da Piql Américas, que tem como premissa o “armazenamento de dados seguro e à prova de futuro”. Roberto Carminatti, diretor técnico da empresa, foi a Ouro Preto apresentar as novidades da Piql e seus modelos de trabalho.
“Nossa preocupação é a longevidade e a durabilidade, não necessariamente a velocidade de acesso ao material”, resumiu. Ele descreveu um dos principais diferenciais do projeto: o armazenamento de conteúdo numa mina de 3 km localizada no Polo Norte, sob baixíssima temperatura. Lá encontram-se atualmente desde a Lei Áurea brasileira até documentações do Vaticano. No caso do audiovisual, Carminatti frisou a preocupação de se preservar baseado na filosofia de que o mais importante é a visão do artista que necessita do suporte tecnológico às suas produções.
Em outra frente, o Canal Brasil, prestes a completar 20 anos, mostrou o quanto suas ações de garimpagem e recuperação de filmes brasileiros enriqueceu o acesso de conteúdo audiovisual exclusivamente nacional. O diretor de conteúdo André Saddy conta que, desde a fundação em 1998, o canal remasterizou 544 longas-metragens, sendo que 200 foram somente no primeiro ano. “Priorizamos o máximo de qualidade para exibir um filme. Às vezes acontece de adiarmos um trabalho que adquirimos para tentar fazer com que ele chegue ao espectador nas melhores condições técnicas possíveis”, afirma.
Em sua masterclass, o documentarista Bill Morrison apresentou diversos curtas-metragens que ele produziu com materiais de arquivo encontrados nos mais variados acervos, fruto de suas investigações imagéticas. Nem sempre Morrison faz exatamente a exposição do material, e sim reorganiza-o. “A depender do contexto histórico, essas imagens são reconfiguradas em busca de outras formas de se expressarem”, diz ele. Em seus filmes, especialmente no longa Dawson City - Tempo Congelado, exibido na CineOP, ele se utiliza de recursos extras, como música contemporânea, alteração de duração da imagem e telas divididas. “Trabalhar com o passado passa por outras formas de se relacionar com ele”, completa.
TEMPO REDESCOBERTO
Nesse contexto, a educação audiovisual se apresenta cada vez mais necessária. Há dez anos se encontrando em Ouro Preto, a Rede Kino, formada por dezenas de professores de todo o país que se preocupam em usar imagens em movimento como elemento pedagógico, trouxe à CineOP o filósofo espanhol Jorge Larrosa. Pensador do cinema como forma de ensino e de diversas proposições sobre o assunto, Larrosa apontou as relações entre os dois ofícios - o de ensinar e o de criar imagens: “A aula é um dispositivo complexo, um exercício de repetir, repetir e repetir. Percebo que o cinema tem dificuldade em lidar com a repetição e com o tédio, pois está sempre em busca do dinamismo. Para ser professor é necessário fazer um tanto de renúncia e de concessões. Acredito que, do mesmo modo, o cineasta deve fazer várias renúncias, pois não é possível mostrar tudo”. Para Larrosa, a escola tem uma coisa maravilhosa: “Se você fracassa, você começa de novo”.
Pautada pela premissa da escola como ambiente de apreensão de memórias do futuro e como valorização do esvaziamento das urgências contemporâneas, as conversas da Temática Educação priorizaram as discussões sobre a importância de simplesmente conviver na escola. O professor Maximiliano López, da UFJF (MG), exibiu o documentário Teoria da Escola na CineOP e diz ter buscado uma fenomenologia cinematográfica da escola. “É uma característica do ânimo, do estímulo do lugar, que nos atingiu de uma forma física quando fizemos o filme”, comenta. Suas descobertas foram ao encontro das ideias propostas pela curadoria de Adriana Fresquet na mostra este ano: “A escola fornece ferramentas para agir no mundo e tem todo um ânimo particular, assim como a temporalidade. Atualmente somos reféns do utilitarismo no uso do tempo, mas a escola ainda é um lugar para se cultivar o ímpeto estudioso a partir da construção de uma realidade que permite fugir desse utilitarismo para valorizar o tempo aproveitado e o tempo morto”.
Karen Rechia, professora da UFSC, reforça o sentido da escola como materialização de um tempo que por muitas vezes nos parece abstrato. “Buscamos pensar qual escola pode ser mais potente em sua forma do que em sua função. O que há de escolar na escola, que resiste a todas as realidades que a atravessa? E no cinema? Há uma vizinhança entre a configuração de um e de outro que nós tentamos investigar em nossos projetos”, conta Karen.
Das fronteiras físicas às tecnológicas, das fronteiras históricas às estéticas, das fronteiras de ensino às do conhecimento, a 13ª Mostra de Cinema de Ouro Preto provocou infinidade de questões, como tradicionalmente faz todo ano. Do evento, saem novas proposições e iniciativas, e edição a edição elas são aprimoradas e se complementam, ampliando uma visão de cinema brasileiro como patrimônio indispensável e indissociável da cultura e evolução de um país. Essa corrente começa nos bancos da escola e vai até a ponta final, a do armazenamento de materiais produzidos. É missão da CineOP seguir iluminando os caminhos desse ciclo.