O domingo na Mostra teve roda de conversa com o tema "Corpos Políticos", sobre o espaço e os desafios de pessoas trans, negras, mulheres e artistas; na programação de hoje, destaque também para o início da Mostra Foco

A série Encontros com os Filmes deste domingo na 22a Mostra de Cinema de Tiradentes levantou questões urgentes e fundamentais sobre representatividade, estética e pontos de vista. As mesas sobre os longas-metragens “Temporada”, de André Novais Oliveira, e “Ilha”, de Glenda Nicácio e Ary Rosa, contribuíram para expandir as experiências dos dois filmes e contou com ótima participação do público no Cine-Teatro Sesi.

Boa parte das conversas se desenvolveu a partir da tentativa dos filmes de apresentarem narrativas anti-hegemônicas, com personagens e conflitos fora de padrões estabelecidos por um cinema brasileiro quase sempre sob controle dos mesmos tipos de artistas, em gênero, etnia e formas de olhar. Tanto “Temporada” quanto “Ilha” trazem frescor a fabulações intensas e a situações ora do cotidiano, ora de tensionamentos, o que foi bastante evidenciado pelas críticas participantes das duas mesas.

A historiadora Natália Batista questionou certa recepção de parte da imprensa a “Temporada” (inclusive positiva) de que “nada acontece e mesmo assim o filme se sustenta por duas horas” ou de que “a paisagem da cidade de Contagem fica bonita por causa do olhar do filme”. Para Natália, ideias como essas, ainda que muitas vezes surjam como elogios, são carregadas de preconceito. “É de se perguntar o motivo de se elogiar o filme dessa forma. Acredito que não se falaria assim se fosse sobre uma família branca de classe média burguesa”, ressaltou.

Natália contrapôs esses comentários ao que vê como a intensidade de acontecimentos em “Temporada” e à cuidadosa construção de personagens feita pelo roteiro. “O filme não verbaliza muitas coisas. Ele tem a capacidade de ser político sem dizer da política. As questões de classe, de subemprego, as dificuldades e alegrias da periferia, está tudo lá, colocado naquele dia a dia”, disse ela. André Novais contou que pequenos conflitos sempre lhe pareceram interessantes, o que o levou a escrever “Temporada” colocando situações das mais variadas dentro de um dia a dia comum. “Meus filmes têm muita fabulação que às vezes algumas pessoas não veem. Tem coisas pessoais no ‘Temporada’, mas acho que é uma transição, talvez, para a construção de outro tipo de personagem”, completa o cineasta. “A intenção é total de colocar as coisas do cotidiano da forma mais cinematográfica possível. Quero cada vez mais fazer filmes nesse caminho, até mais radicais”.

Protagonista de “Temporada”, Grace Passô – homenageada desta edição da Mostra – exaltou o “grande cronista” que ela vê em André Novais. “O mesmo olhar que o André tem para as paisagens (da cidade) ele tem para as pessoas, sempre em busca de estratégias para que quem está atuando se aproprie do texto que ele nos deu”, descreveu a atriz.

No bate-papo sobre “Ilha”, a crítica Soraya Martins resumiu os conflitos do filme de Glenda Nicácio e Ary Rosa como “a emergência de um novo que constrói espaços e relações para reconfigurar um espaço comum sem ser igual”. Ela se referia aos dois protagonistas, homens em situações-limite (um cativo do outro) que revelam desejos intensos de se apropriarem de suas próprias narrativas.

 

Para Ary Rosa, o protagonista Emerson “quer reivindicar a sua história e leva pra dentro do seu território o Henrique, aquele que ocupa o outro lugar, o lugar mais central”. Depois de estrearem em longa-metragem com “Café com Canela”, exibido na Mostra em 2018 e mais focado em personagens mulheres, Glenda e Ary decidiram por abordar dois homens em “Ilha”. “Buscamos um tipo de sensibilidade desvalorizada no homem, em especial no homem negro”, destacou o codiretor.

CORPOS POLÍTICOS

A programação noturna teve como destaque a realização da primeira roda de conversa no Sesc Cine-Lounge. Com o tema “Corpos Políticos”, o encontro abriu espaço para a discussão política a respeito das possibilidades de existência de homens e mulheres trans. Para falar sobre o assunto, estiveram presentes a professora, ambientalista e presidenta da ONG Transvest, Duda Salabert, que apresentou dados estarrecedores a respeito desta parcela da população – como o de que 80% das travestis mortas em 2018 eram negras -, Galba Gogoia (diretora de “Jéssika”, a ser exibido na quarta, no Cine-Praça) e Ariel Nobre (“Preciso dizer que te amo”, que passa hoje, no mesmo espaço). A mediação foi feita pela curadora Tatiana Carvalho.

A conversa, com forte interação do público, mesclou momentos de questionamentos políticos e vivências pessoais. “Não somos vistos como humanos. Ainda brigamos por nome, por qual banheiro usar, por identidade. Se não sou reconhecida como um ser humano, como posso me relacionar com a arte?”, questionou Duda. A declaração teve sequência na fala da diretora de Jéssika, que apontou a repetição de estereótipos que persistem nas narrativas relacionadas a estas pessoas. “Nossa história não está resumida à transformação do corpo e à prostituição. Nossa história também tem a ver com afetos”, afirmou.

Para Ariel Nobre, esta invisibilidade contribui com a relação (por vezes negativa) que estas pessoas têm com o próprio corpo. Ao relembrar sua trajetória, citou o número de suicídios de homens trans: cerca de 11 mil ao ano. “Somos sistematicamente suicidados. Existem aspectos pessoais envolvidos nesta questão, mas também existem os coletivos e políticos”.

NAS TELAS E NA PISTA

A programação contou com forte presença do público ao longo de todo o dia. Além dos debates, destaque para a estréia da Mostra Olhos Livres, com a exibição de “Tragam-me a cabeça de Carmen M.”, e “Inferninho”, na Mostra Corpos Adiante. Na Praça, a atração foi “Clementina”, considerada o elo perdido entre a cultura brasileira e as raízes africanas. A noite terminou com a apresentação do paraense Jaloo, que lotou a tenda e apresentou o público a energia de sua música.

ENCONTROS E DESENCONTROS ABREM A MOSTRA AURORA 

Os encontros e desencontros de um jovem cineasta de classe média dão o pontapé inicial na 12ª edição da Mostra Aurora na noite desta segunda-feira, 20 de janeiro, dentro da programação da 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes, que segue até o dia 26. Primeiro longa-metragem do diretor paulistano Caetano Gotardo, “Seus Ossos e Seus Olhos” tem pré-estreia mundial hoje às 20h, no Cine-Tenda, abrindo a tradicional seção competitiva do evento, antes de seguir para o Festival de Roterdã, onde participa da paralela Bright Future.

Logo em seguida, às 22h30, tem início a competição da Mostra Foco, com os primeiros quatro curtas na disputa pelo troféu Barroco: o paulistano “Tea for Two”, de Julia Katharine (vencedora do troféu Helena Ignez em 2018, por “Lembro-me Mais dos Corvos”); o cearense “O Bando Sagrado”, de Breno Baptista; e os baianos “Um Ensaio sobre a Ausência”, de David Aynan, e “Onze Minutos”, de Hilda Lopes Pontes. O vencedor, assim como na Mostra Aurora, será definido pelo Júri da Crítica, formado pelo crítico e programador argentino Roger Koza, a pesquisadora francesa Claire Allouche e os brasileiros Kênia Freitas, Juliano Gomes e Izabel de Fátima Cruz Melo.

Já a Mostra Olhos Livres, avaliada pelo Júri Jovem, apresenta às 18h, também no Cine-Tenda, seu segundo concorrente. Dirigida por Jean Santos, a produção pernambucana “Superpina: Gostoso é Quando a Gente Faz” retrata um fenômeno natural inexplicável em um supermercado do tradicional bairro Pina, em Recife. Completando a programação cinematográfica da segunda, a Mostra de Tiradentes oferece ainda outros dois programas de curtas: as primeiras séries das Mostras Formação, às 17h30, no Cine-Teatro Sesi; e os Curtas na Praça, no Cine-Praça, a partir das 21h.

O CORPO, A CABEÇA E O INFERNO

A discussão da temática “Corpos Adiante”, que norteia toda esta 22ª edição do evento, também continua nesta segunda. No seminário “Corpos em Trânsitos Artísticos por Dentro da Cena”, marcado para as 15h30 no Cine-Teatro Sesi, o artista plástico Desali, a pesquisadora e curadora Luciana Eastwood Romagnolli e o dramaturgo e ator Rafael Martins refletem sobre o diálogo entre o cinema, as artes cênicas e visuais por meio da experiência do corpo com o espaço físico em cada uma dessas linguagens. A mediação será da curadora de curtas Camila Vieira.

Antes disso, a série Encontro com os Filmes debate os dois longas exibidos no Cine-Tenda na noite de domingo. Às 11h, no Cine-Teatro Sesi, a crítica Ela Bittencourt bate um papo com os diretores Felipe Bragança e Catarina Wallenstein sobre “Tragam-me a Cabeça de Carmen M.”. E logo na sequência, às 12h15, os realizadores cearenses Guto Parente e Pedro Diógenes dissecam seu “Inferninho” com a ajuda do crítico e também cineasta João Dumans (“Arábia”).

ESQUENTA PARA O CARNAVAL

À noite, a 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes ganha uma breve degustação do carnaval, com o show de Di Souza no Sesc Cine-Lounge. À 0h30, o multi-instrumentista mineiro, conhecido como o grande maestro do bloco belo-horizontino “Então, Brilha”, promete animar o público com muito bom humor e ironia, em arranjos inteligentes e, por vezes, inusitados. Nome recorrente no cenário da atual música do Estado, o cantor mostra seu lado multifacetado de compositor e arranjador num show repleto de minúcias e de ótimas sacadas.

Além dele, o Lounge da tenda também segue recebendo a mostra permanente de videodança Corpo a Corpo, a partir das 19h. A curadoria de Thembi Rosa apresenta trabalhos sinestésicos que ressaltam a multiplicidade de se pensar, sentir, ver, viver e expandir as noções de corpo nos dias de hoje e adiante. Entre eles, estão vídeos de Ana Pi (MG/França); Cao Guimarães (MG); Sayara Elielson Pacheco (Piauí); Fernanda Lippi & Andre Semenza (MG/UK) Flávia Pinheiro & Leandro Olivan (PE/Argentina); Marcellvs L. (MG/Alemanha); Marco Paulo Rolla (MG); Mitchell Rose (EUA); Nirlyn Seixas & Eline Gomes (Bahia/Venezuela); Taneli Törmä (Finlândia); Thembi Rosa & Lucas Sander (MG); e Wagner Schwartz (MG/França).

Serviço
 22ª MOSTRA DE CINEMA DE TIRADENTES | 18 a 26 de janeiro de 2019

LEI FEDERAL DE INCENTIVO À CULTURA

LEI ESTADUAL DE INCENTIVO À CULTURA

Patrocínio:  TAESA, KINEA/Itaú, CSN, CBMM, CEMIG, COPASA|GOVERNO DE MINAS GERAIS

Parceria Cultural: SESC em Minas

Fomento: CODEMGE|GOVERNO DE MINAS GERAIS

Apoio: ACADEMIA INTERNACIONAL DE CINEMA, SESI FIEMG, OI, INSTITUTO UNIVERSO CULTURAL, TRES, WALS CERVEJA ARTE, MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, SENAC, CINEMA DO BRASIL, DOT, MISTIKA, CTAV, NAYMAR, CINECOLOR, GLOBO MINAS, CANAL BRASIL, EMBAIXADA DA FRANÇA, ETC FILMES, NOVA ERA SILICON, POLÍCIA MILITAR, PREFEITURA DE TIRADENTE E CENTRO CULTURAL AIMORÉS.

Incentivo: SECRETARIA DE ESTADO DE CULTURA| MINAS GERAIS

Idealização e realização: UNIVERSO PRODUÇÃO

MINISTÉRIO DA CIDADANIA | GOVERNO FEDERAL

LOCAIS DE REALIZAÇÃO DO EVENTO 

Centro Cultural Sesiminas Yves Alves   

Largo das Fôrras 

Largo da Rodoviária

Escola Estadual Basílio da Gama