Apesar de incertezas institucionais em âmbito federal, o sentimento de participantes da CineOP é de otimismo e união para que as políticas de preservação sejam implementadas

Em tempos de colocar em perspectiva as formas como olhamos para o outro e de defender e valorizar a diversidade em todas as instâncias possíveis, a 12ª CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto se conclui  com o espírito de ter apontado possibilidades de caminho. O 12º Seminário do Cinema Brasileiro: Fatos e Memória, o Encontro Nacional de Arquivos e Acervos Audiovisuais Brasileiros e o Encontro da Educação: IX Fórum da Rede Kino – Rede Latino-Americana de Educação, Cinema e Audiovisual reuniu, ao longo de 20 debates, a participação de 90 convidados, acadêmicos, pesquisadores, historiadores, críticos de cinema, além das dezenas de demais presenças que acompanharam as conversas e três convidados internacionais de México, Argentina e Chile. O sentimento geral foi de que, apesar do momento sombrio e indefinido que se vive no âmbito institucional do Estado brasileiro, é absolutamente necessário enfrentar a situação com vigor e originalidade.

“A CineOP cumpre, mais uma vez, o seu papel de ser espaço de encontro e convergência de profissionais e instituições de vários segmentos que trabalham com a imagem, cinema e educação. De modo especial, registramos nesta edição um momento histórico com a entrega e apresentação do Plano Nacional de Preservação, ampliando o diálogo com os diversos elos da atividade cinematográfica, ao mesmo tempo, que percebemos também a maturidade do setor da preservação para enfrentar os desafios e unir para que avanços sejam conquistados”, ressalta a coordenadora da CineOP e diretora da Universo Produção, Raquel Hallak.

O eixo Preservação, História e Educação, a essência da CineOP, girou em torno da temática “Quem conta a história no cinema brasileiro?”, com o assunto rearranjando-se para cada instância onde foi debatido. O professor João Luiz Vieira (UFF-RJ) ponderou que, apesar do momento “em que o país anda para trás”, é perceptível a união de toda a classe audiovisual para encarar os desafios. A começar pelo reforço à necessidade e urgência do Plano Nacional de Preservação Audiovisual, elaborado ao longo da última década por setores da sociedade civil na própria CineOP e, agora pronto, em busca de interlocução no governo federal. “Ninguém pode prever nada, pois estamos sem diálogo com os setores políticos, mas a gente sente que isso aumentou nossa união e maturidade”, diz João Luiz. “Momentos de crise e de perplexidade provocam essas coisas. É preciso achar as brechas por onde se esgueirar”. Ele lembrou que, apesar da falta de perspectivas, um diretor da Ancine (Agência Nacional do Cinema), Roberto Lima, esteve em Ouro Preto. “São portas que devem ser aproveitadas”.

O pesquisador Cezar Migliorin (UFF-RJ) reforça a percepção e exalta que “não há transformações que não passem por radicais mudanças sensíveis”. Diz ele: “Estamos num momento de exaustão com o Estado e precisamos trabalhar a partir disso. A exaustão pode ser libertária e precisa estimular o confronto”. A cineasta e também pesquisadora Anita Leandro acredita que uma forma de luta possível é a utilização do próprio cinema como arma, e os materiais de arquivo como munição: “Diante da atual falência de governo, é hora de responder pela estética”.

Para Adriana Fresquet, curadora da Temática Educação, o que fica é uma ideia de esperança associada à potência política de uma produção ameríndia apresentada na programação da CineOP deste ano. “Vimos formas de luta e resistência para manter uma cultura e a sobrevivência de todo um povo que vem sendo esmagado, criminalizado, massacrado. Me parece que o resultado, pela efervescência do público participante, dos cineastas, preservadores e produtores que estiveram na Mostra, nos deixa com uma mensagem de otimismo”.

A Carta de Ouro Preto, documento elaborado anualmente com balanços e diretrizes das discussões, foi elaborada pelos grupos de Educação e Preservação tendo por apontamentos centrais a resistência e o avanço da defesa das políticas públicas dos setores. Carlos Roberto de Souza, presidente da ABPA (Associação Brasileira de Preservação Audiovisual), acredita que, apesar das dificuldades, o saldo é positivo. “As mesas foram inspiradoras neste momento horroroso em que estamos vivendo. Compartilhamos mais problemas do que soluções, pois ninguém tem as respostas, nem em nível técnico nem político”, afirma.

PRESENÇAS VARIADAS

As discussões das Emergências Ameríndias apareceram nas mesas e em diversos filmes espalhados na programação. Foi o caso da expressiva participação de Patrícia Ferreira (Para Yxapy), cineasta que exibiu filmes e compôs DEBATES. Uma das únicas mulheres realizadoras de sua etnia, autora de vários trabalhos no projeto Vídeo nas Aldeias (homenageado na Mostra por seus 30 anos), Yxapy conta ainda sofrer preconceitos não apenas por ser indígena, mas também pelos estereótipos em torno do imaginário do que seria um cinema indígena. “Muitas pessoas estranham ou esperam que façamos alguma coisa exótica”.

A professora Ludmila Brandão (UFMT) destaca que o diferencial dos filmes indígenas de marca autoral é justamente ir contra expectativas da sociedade branca. “A quebra sistemática dos cânones exige sempre a reinvenção das estéticas vigentes, e essas estéticas da arte são, de tempos em tempos, superados pela arte emergente”. O curador da Temática Histórica, Francis Vogner dos Reis, completa: “Os filmes indígenas apresentam, atualmente, alguns dos trabalhos de maior expressividade e interesse no cenário contemporâneo da produção brasileira”.

No âmbito da preservação, foi certamente o ano de avançar nas conversas sobre a complexa situação dos arquivos digitais. Como guardar tantas e tão indefinidas horas e horas de material filmado em tempos de celulares com câmeras, equipamentos leves e as infinitas possibilidades de registro imagético e sonoro no século 21? Entre as várias vertentes levantadas no Seminário – arquivos fílmicos em película, digitalização de acervos, armazenamento em HDs, conservação de videogames, documentos correlatos, materiais de publicidade e divulgação, midiativismo –, o que houve em comum foi a preocupação de como manter viva uma memória espalhada em tantos formatos. “Existe uma vontade genuína de os cineastas aprenderem a guardar seus filmes”, conta Lila Foster, curadora da Temática Histórica e também pesquisadora de arquivos. O que falta, segundo ela, é organização e dedicação a esse trabalho. O cineasta Cavi Borges concorda: “Nós, que fazemos filmes, estamos sempre preocupados com o próximo trabalho e deixamos de lado o que já foi feito e está pronto. Mas é nossa responsabilidade cuidar disso”.

Vários casos de estudo foram apresentados nas mesas do Seminário, compartilhando experiências de triagem, organização, armazenamento, catalogação e restauração de material. Para Andrés Levinson, preservador do Museo Del Cine de Buenos Aires (Argentina), o esforço maior deve ser em guardar os materiais originais e também seus suportes de reprodução, e não simplesmente digitalizar registros feitos antes em outras plataformas. “Existe a ideia, que é enganosa, de que qualquer material fica seguro no digital. Isso não é verdade, porque não temos como prever como estará a tecnologia daqui a alguns anos”, alerta ele. Manter arquivos nas nuvens virtuais ou resgatar filmes em película apenas transferindo-os para suportes digitais não é a saída, acredita. Andrés defende que, a certa altura, será preciso fazer algum tipo de curadoria do vasto material constantemente produzido atualmente. “Como isso será feito? É difícil dizer, mas é importante ter a consciência de que o material só está realmente arquivado se estiver em seu formato original”.

REPRESENTAÇÕES DA HISTÓRIA

Entre o contemporâneo e o histórico, a programação de filmes trouxe uma série de estímulos para se pensar o audiovisual no país hoje. O crítico, roteirista e pesquisador Fábio Andrade afirmou que a CineOP “é o mais oportuno festival de cinema brasileiro hoje, justamente por ser o mais político”. A impressão fica patente na exibição desde filmes como “Martírio”, de Vincent Carelli, que mobilizou os espectadores do Cine BNDES na Praça, a comédias populares dos anos 1950, como “É um Caso de Polícia!”, de Carla Civelli. Um gesto forte da curadoria foi programar um filme relativamente recente como “A Primeira Missa ou Tristes Tropeços, Enganos e Urucum”, de Ana Carolina, produzido em 2014 e inserido na Mostra Histórica. “Trata-se de um filme que lida com os constrangimentos históricos do cinema brasileiro, com as falhas da representação e com o fracasso de uma ideia de país”, aponta Francis Vogner.

Graças à homenageada Cristina Amaral, montadora paulista, o público pôde assistir a títulos essenciais como o curta-metragem “A Voz e o Vazio: A Vez de Vassourinha”, de Carlos Adriano, e “Já Visto Jamais Visto”, de Andrea Tonacci, ambos editados por ela. A valorização da memória de artistas adorados por público e críticos apareceu nos belos perfis “Pitanga”, dirigido por Camila Pitanga, e “Rosemberg – Cinema, Colagem e Afetos”, de Cavi Borges e Christian Caselli. A fantasmagoria do passado marcou presença em filmes como “A Maldição Tropical” (Luísa Marques e Darks Miranda), “Divina Luz” (Ricardo Sá) e “Cinebiogravura” (Luís Rocha Melo), todos utilizando documentos e arquivos para trazerem ao presente as manifestações do passado sob diversas formas.

A preservação, fruto da paixão pelo arquivo; a educação, que gera a continuidade dos processos de realização; a emergência da diversidade: todas as vertentes se uniram na 12ª CineOP de maneira orgânica e estimulante. A consequência a todos os envolvidos é a manutenção das micropolíticas que possam iluminar o atual momento e preparar para que novas edições da Mostra sigam trazendo e apresentando o que de há mais fundamental na circulação das formas éticas e estéticas.