Em 2017, a mostra esteve em oito espaços de Belo Horizonte, consolidou a relação direta com movimentos sociais e urbanos e celebrou a originalidade do francês Pierre Léon; ao mesmo tempo, a 8ª edição do Brasil CineMundi firmou parcerias e ajudou a viabilizar novas produções
A urgência e a reflexão, dois conceitos a princípio tão distantes, estiveram no centro das discussões da 11a CineBH – Mostra de Cinema de Belo Horizonte. A exibição de 101 filmes, entre longas, médias e curtas-metragens, e a presença do evento em espaços na Fundação Clóvis Salgado, Teatro Sesiminas, Sesi Museu de Artes e Ofícios, Sesc Palladium, Cine Theatro Brasil Vallourec, MIS Cine Santa Tereza, Cine 104 e Praça da Estação ofereceram ao público da capital mineira um misto de descobertas do que de mais expressivo tem sido produzido no mundo e a oportunidade de reviver grandes clássicos a partir do olhar atual. A ponte entre o ontem e o hoje, ligando passado e presente, trouxe a percepção de que a hipervelocidade do século 21 precisa ser percebida com mais acuidade e que a arte tem por vocação provocar e apontar caminhos para o futuro.
Isso ficou bastante claro na sessão especial em celebração aos 50 anos de “Terra em Transe” de Glauber Rocha. “Não tinha como esse filme ser mais atual do que hoje”, apontou Ismail Xavier. A alegoria política do cineasta baiano ganha contornos premonitórios se vista sob a perspectiva do Brasil de 2017 e parece, de fato, um olhar adiantado aos caminhos do país nos últimos anos. “Glauber fez um traço de caneta ligando duas épocas distintas e adiantou muita coisa que aconteceria no Brasil, desde a luta armada contra a ditadura nos anos 1970 até a crise política que a gente vive agora”, destaca Ivana Bentes, professora na UFRJ.
A premência dessa contemporaneidade apareceu em diversas outras sessões dentre as 60 promovidas pela CineBH. No total, foram exibidos 101 filmes nacionais e internacionais, em pré-estreias e retrospectivas (41 longas, 1 média e 59 curtas-metragens). Com a temática central Cinema de Urgência, a mostra propôs aos espectadores um conjunto de trabalhos produzidos na ânsia em captar os movimentos da história em movimento. “Existem realizadores que percebem o fluxo dos acontecimentos e precisam ir para as ruas registrá-los. Como lidar com essas imagens depois, como usá-las de maneira diferente ao noticiário tradicional que a gente vê na televisão?”, questiona Pedro Butcher, um dos curadores da CineBH.
O cineasta Douglas Soares, que prepara documentário sobre o impeachment de Dilma Rousseff, diz que, na maioria das vezes, é preciso readequar toda uma produção de acordo com os rumos que os acontecimentos seguem, quase sempre inesperados. “Começamos nosso filme com a proposta de ficar duas semanas em Brasília e acabamos lá durante quatro meses, no ano passado”, descreve. “A grande crise vem depois, na dúvida sobre qual o caminho a ser traçado a partir daquele vasto material que você colheu. Tem muitos filmes guardados ali”.
A curadora e pesquisadora Paula Kimo aponta o que chama de “cinema em estado de urgência”, referindo-se a filmes que são feitos no calor do momento e passam rapidamente pelos processos mais convencionais de produção. “Às vezes a situação registrada precisa circular rápido, sem tantas intermediações. Em alguns desses filmes a gente percebe a câmera como uma arma de militância e o cineasta como um corpo-câmera, como alguém que está integrado diretamente às imagens que capta”, diz ela.
O sentido de urgência foi o mote para a exibição de títulos dos mais diversos, tanto na mostra Contemporânea (com curadoria de Pedro Butcher, Francis Vogner e Marcelo Miranda nos longas e de Pedro Maciel Guimarães nos curtas) quanto no recorte da mostra A Cidade em Movimento (curadoria de Paula Kimo). O público pôde ver desde o clássico “Videogramas de uma Revolução” (1992), de Harun Farocki e Andrei Ujica, sobre a deposição do presidente romeno em 1989, até o senegalês “A Revolução não Será Televisionada”, de Rama Thiaw, que registra os protestos de rua no país contra a reeleição de um líder político. Do Brasil, “Males sem Terra”, de João Arthur, mostrou uma alegoria sobre os abusos contra os trabalhadores nas reformas da Arena Maracanã, no Rio de Janeiro. Também uma série de curtas-metragens e longas realizados em Belo Horizonte foram exibidos, levantado temas como religiosidade, cultura urbana e políticas sociais.
O segundo ano da mostra A Cidade em Movimento, aliás, consolidou este como um dos recortes mais expressivos da CineBH. Com a proposta “Quem movimenta a cidade?”, 25 filmes (3 longas e 22 curtas) foram exibidos, divididos em três frentes: comunidade, lugares e pessoas. “O objetivo foi o de apresentar trabalhos que utilizassem a câmera como forma de vida ou mesmo como performance e que se relacionassem diretamente com aquilo que de mais significativo acontece na vivência urbana”, ressalta a curadora. Após as sessões, rodas de conversa com cineastas e lideranças ou referências comunitárias sempre discutiam os filmes e as questões levantadas.
LITERATURA E ORALIDADE
Apresentando as sessões de todos os seus filmes, o cineasta francês Pierre Léon, homenageado desse ano na CineBH, foi uma das figuras mais presentes do evento. Sempre bem-humorado, Léon conversou com o público sobre cada um dos seus trabalhos, participou de um bate-papo aberto e escolheu três longas-metragens que lhe são fundamentais na própria formação, nos Diálogos Históricos. Definiu-se como “um cineasta paralelo, e não marginal”. Chamou seu cinema de “anacrônico”, pelas referências à literatura, ao teatro, à música e às artes plásticas. “Sou muito mais interessado nessas manifestações artísticas do que propriamente em cinema”, confessa o realizador, que valoriza a força da palavra como elemento estético no trato com as imagens.
A relação de Léon com as outras artes foi claramente percebida por quem se dedicou a acompanhar seus 14 filmes exibidos. Entre adaptações literárias (“O Idiota”, “O Adolescente”, “Tio Vânia”, “Dois Rémi, Dois”), experimentos com a forma e a linguagem (“Phantom Power”) e mergulhos na intimidade de amigos ou familiares (“Biette”, “Nissin dit Max”, “Por Exemplo, Electra”), o cinema de Pierre Léon se apresentou como um sopro de originalidade. “Os motivos que me levam a filmar são sempre muitos simples. E não preciso de tanto dinheiro, por isso filmei muito e sempre o que eu quis, sem exigências externas”, conta ele. “Às vezes o cinema pode ser apenas duas pessoas sentadas numa mesa enquanto conversam”, disse, em referência a “O Caminhão”, filme de Marguerite Duras que ele propôs para a seção Diálogos Históricos.
CONEXÕES
Simultaneamente à programação de filmes e debates, o Brasil CineMundi – 8th Coproduction Meeting teve, em 2017, a grande novidade de acontecer em parceria com a MAX – Minas Gerais Audiovisual Expo, realizada pela Codemig|Governo de Minas Gerais, Sesi Fiemg e Sebrae. Isso permitiu que os produtores e realizadores dos 25 projetos selecionados para as rodadas de conversa do programa pudessem circular pelo Museu de Artes e Ofícios – onde se concentraram os encontros de coprodução e o seminário com painéis e workshops – e pela Serraria Souza Pinto, onde era possível conhecer as novidades do mercado audiovisual, firmar contatos e diálogos e acompanhar outras apresentações de profissionais da área.
A parceria entre a MAX e a CineBH rendeu a montagem de um cinema na Praça da Estação, que exibiu diariamente clássicos como “Blade Runner”, “Janela Indiscreta” e “ET – O Extraterrestre”, além de produções mineiras de grande repercussão, como “Fantasmas”, de André Novais, e “A Velha a Fiar”, de Humberto Mauro.
Ao longo da semana, o Seminário Brasil CineMundi reuniu os participantes em debates, estudos de caso, workshops e orientações para uma melhor fluidez nos processos e acordos de coprodução internacional. “É um casamento, e você precisa estar sempre preparado para enfrentar os problemas em conjunto”, alertou Rachel Daisy Ellis. Sua experiência com as bem-sucedidas carreiras internacionais de “Ventos de Agosto” e “Boi Neon”, ambos do pernambucano Gabriel Mascaro, foram exemplos de iniciativas que podem gerar bons frutos.
A presença de coprodutores da Europa e da América Latina estreitou os laços com cineastas brasileiros, que puderam expor propostas e detalhar processos, firmando a vocação do Brasil CineMundi de servir de ponte para relações entre toda a cadeia audiovisual. Estiveram participando representantes de 13 países: Alemanha, Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, EUA, França, Holanda, Itália, Noruega, Suíça e Uruguai.
Alguns encontros lotaram seus espaços de realização, em especial a mesa Mercado Documentário: Visões Contemporâneas. Mesmo num cenário de crise financeira internacional, dezenas de cineastas buscaram informações sobre como se inserir num mercado amplo, sempre em disputa e que se caracteriza principalmente pela necessidade de o artista se fazer ouvir através das mais distintas formas documentais – o que também dialoga com a ideia do Cinema de Urgência tão presente ao longo da CineBH.
Para José Rodriguez, diretor do Programa de Documentário do Tribeca Film Institute, sua busca de projetos geralmente passa pela percepção de “histórias que reflitam a diversidade de culturas latino-americanas, fugindo sempre de estereótipos latinos e abordagens muito convencionais”. Fernando Dias, da produtora Grifa Filmes, reforça: “O Brasil é um dos países com mais oportunidades de projetos que atraem o interesse tanto do mercado nacional quanto do mercado global. Nos últimos anos, o produtor independente passou a ter mais oportunidades de participação na produção de conteúdo. É preciso conhecer bem o perfil do festival ou do espaço que se busca para sobreviver num mercado tão disputado”.
Nos seis dias de CineBH, o que se viu foi a paixão pelo audiovisual, a vontade de ver e fazer, as ideias a proliferar entre sessões de cinema e rodadas de conversa e as perspectivas de um futuro em construção. O festival termina sua 11a edição ainda mais consciente de seu papel de agregador de talentos e da vocação em proporcionar espaços e possibilidades para que novas propostas ganhem a luz dos projetores e os olhares do público. Num cenário incerto e em plena efervescência política e econômica em todo o planeta, a Mostra tenta, à sua maneira singular e com a cooperação de tantas frentes de batalha, contribuir para que a arte se estabeleça e permaneça.
Foto: Leo Lara/ Universo Produção