Bate-papo aconteceu no Palácio das Artes, local também de uma Roda de Conversa na qual o cantor Ney Matogrosso, ator em “Sol Alegria”, defendeu que o cinema brasileiro precisa de mais anarquia

A produtora argentina Laura Citarella, representante do coletivo El Pampero Cine, participou, na tarde desta quarta-feira (29), de uma masterclass no Programa de Formação Audiovisual da 12a CineBH. A El Pampero está sendo celebrada pela mostra deste ano por seus métodos arrojados de produção e por se apresentar, nos últimos anos, como uma das iniciativas mais instigantes e bem-sucedidas do cinema autoral latino-americano. Bem-sucedida, aqui, significa essencialmente fazer os filmes que quiserem da maneira como lhes convêm, sem ingerências externas que alterem os rumos daquilo que os realizadores do coletivo ambicionam em seus trabalhos.

“A El Pampero nasce em 2002 como um grupo de cineastas que quer fazer filmes através de estruturas diferentes daquelas que se estabeleceram nos meios mais comuns de produção”, disse Laura à plateia de cineastas, críticos, jornalistas e interessados em geral que compareceu ao Palácio das Artes para ouvi-la. “Não é uma produtora que surgiu como resistência ao governo ou ao neoliberalismo que sempre tenta empobrecer as estruturas estatais de apoio à cultura. Nós aparecemos até antes disso se firmar e dentro de um contexto não tão agressivo. A existência da El Pampero está relacionada a questões não necessariamente conjunturais ou sociais da Argentina, e sim à tentativa de fazer filmes que fossem distintos daqueles a que assistíamos no começo dos anos 2000”.

Essa outra maneira de produção alternativa desenvolvida pela El Pampero Cine ao longo de 16 anos e 13 longas-metragens se resume numa forma mais artesanal e horizontal de realização, sem as mediações mais típicas do meio audiovisual. Significa que o quarteto formado por Mariano Llinás, Laura Citarella, Agustín Mendilaharzu e Alejo Moguilansky sempre se organizou a partir do que lhes instigava e interessava, sem qualquer tipo de pressa ou organização piramidal que caracteriza os processos mais tradicionais. “A El Pampero criou um pequeno sistema interno de produção e é difícil imaginar como ele pode ser transplantado para outras iniciativas. Pois somos, antes de tudo, grandes amigos, quase irmãos mesmo, e queremos continuar assim. Buscamos experimentar livremente, especialmente na forma”, frisou Laura.

Ela contou que, por conta dessas escolhas, nenhum dos integrantes da El Pampero Cine sobrevive financeiramente das atividades da produtora. “Há poucos casos na história da arte em que se conseguiu complementar experimentação com ganho financeiro, então, por isso, desenvolvemos nossos trabalhos pessoais, em várias áreas do cinema, enquanto tocamos os projetos da El Pampero paralelamente”, disse Laura. “O motor dos nossos filmes não está colocado, de nenhuma maneira, na economia da feitura desses filmes. Eles se fazem como for possível e não exigimos que se tornem mercadoria”.

Laura criticou os agentes de venda – figuras típicas do mercado de circulação audiovisual mundo afora –, apontando o quanto eles cobram valores exorbitantes por seus serviços, muitas vezes injustamente e sem retornos garantidos. E ainda criticou produtores que optam por investir mais em aluguel de equipamentos de alto valor financeiro do que em remunerar dignamente membros de equipe e elenco. “Não quero ser demagógica, só que, para nós, isso soa obsceno, não faz sentido e não fazemos dessa maneira”.

Ela esclareceu que a El Pampero Cine não é a defesa de um modo de produção, e sim uma opção particular de um grupo específico de cineastas que se dispõe a passar vários anos (ou até mesmo uma década, como é o caso de Mariano Llinás em La Flor, que será exibido entre quinta-feira e sábado, na CineBH) se dedicando, nas possibilidades de agenda e estrutura, a um único filme. “Os projetos da El Pampero são diretamente influenciados pelas nossas formas produção. São as nossas escolhas que definem como e o que serão os filmes, pois como não usamos recursos de editais nem contratamos produtores – sendo nós mesmos os produtores dos nossos filmes –, não existe qualquer tipo de pressão que venha do ambiente externo”.

SOL ALEGRIA

Na manhã de quarta-feira, a CineBH promoveu também uma Roda de Conversa sobre o longa-metragem Sol Alegria, que abriu o evento na noite de terça-feira. Com as presenças do diretor Tavinho Teixeira, da codiretora Mariah Teixeira e do ator e cantor Ney Matogrosso, o encontro reuniu espectadores e curiosos no Cine Lounge, na parte externa do Palácio das Artes. Muito se falou sobre as escolhas estéticas e narrativas do filme, que trata de uma sociedade brasileira distópica em que o governo do país está sob jugo de uma facção ultrarreligiosa e conservadora. Em cena, uma família de dissidentes anárquicos faz diversos serviços para exaltar a liberdade.

“Escrevi o filme para ser uma distopia num futuro distante, tipo 2038, só que agora se tornou uma realidade muito próxima, tanto que atualizamos para a ação se passar agora, em 2018”, contou Tavinho Teixeira. “Estamos vivendo um período de dominação e de ameaça, de perda de direitos”.

Ao seu lado, Ney Matogrosso exaltou o caráter anárquico de Sol Alegria como a proposição de uma forma de vida baseada na escolha individual de cada indivíduo. “Direitos não são algo que podem tirar de qualquer um de nós. Anarquia muitas vezes é confundida com bagunça, mas não é nada disso: trata-se de uma forma de viver que valoriza a si mesmo e a sua relação com o outro”, defendeu o cantor, que disse se identificar com cineastas que pregam maneiras libertárias de contato com o cinema – casos de outros nomes com quem já fez filmes, como Ana Carolina e Helena Ignez.

A atriz Mariah Teixeira, que assina a codireção de um filme pela primeira vez em sua carreira, contou ter se aproximado tanto da realização de Sol Alegria que acabou se incorporando às decisões de seu pai, Tavinho. “O filme é uma espécie de reprodução da nossa relação, um olhar poético sobre como nós dois enxergamos o mundo”, disse ela. A experiência de trabalhar e atuar em família foi positiva, especialmente por, segundo Mariah, ampliar para toda a equipe a maneira liberta e horizontal típica de Tavinho. “O cinema brasileiro tem na figura do diretor alguém cheio de poderes, e os sets se tornam lugares de disciplina militar. Precisamos diminuir isso e dar aos ambientes de filmagem mais afeto e mais igualdade de relações”.

ENCONTRO DE COPRODUÇÃO

A quarta-feira teve ainda a mesa “O mercado e a formação em documentário”, dentro do Programa de Formação Audiovisual e importante atividade do 9o Brasil CineMundi. Cada um dos presentes detalhou como funcionam os programas e iniciativas que coordenam, esclarecendo os presentes sobre as formas de acesso às respectivas atividades de desenvolvimento de projetos.

Maria Bonsanti, diretora do Eurodoc (França), chamou atenção para a importância de eventos como este na potencialização do aprendizado, da experiência e na formação de networking. Falando sobre o  DocMontevideo/DocSP, outro convidado da mesa, Luiz González Zaffaroni, afirmou que o programa é um espaço de capacitação, de mercado e de exibições. “Para nós, desde o início, o desafio era construir uma ponte de colaboração entre o cinema e a TV. Em 10 anos, 80 projetos viraram filmes”, contou ele.

O surgimento do DocMontevideo, segundo Zaffaroni, vem da necessidade de expandir as possibilidades de expressão num gênero que precisa de tempo, investimento e força de trabalho. “Já o DocSP tenta criar espaços de circulação e de fomentos à produção de projetos de longas-metragens e de séries em documentários”. Pierre-Alexis Chevit, diretor do Doc Corner Project, frisou que, com o tempo, o documentário vem conseguindo conquistar espaço próprio nos principais festivais de cinema do mundo, lado a lado com as ficções.

TODA PROGRAMAÇÃO É OFERECIDA GRATUITAMENTE AO PÚBLICO.