A reação e a reinvenção do e no cinema. Esse eixo temático permeou os filmes, encontros, debates e discussões da 20ª Mostra de Cinema de Tiradentes, realizada entre 20 e 28 de janeiro de 2017. A curadoria propôs olhar para a forma como o audiovisual brasileiro tem se comportado num período de crises e incertezas políticas do atual cenário brasileiro. Dedicada ao cinema brasileiro de invenção, reflexão e inquietação, a Mostra reuniu filmes e profissionais diversos para se dedicarem a complexas questões. “O cinema reage, é uma reação dos criadores à vida. Reagem à observação do mundo, a uma reflexão sobre algo da existência deles ou de outros seres, não sem trabalho da imaginação investido nessa reação formal”, escreveu o curador Cléber Eduardo.

 A proposição temática “Cinema em reação, cinema em reinvenção” esteve presente desde as conversas sobre os filmes até o extrafílmico, especialmente nos questionamentos sobre representação e representatividade – e as diferenças entre um e outro. “É muito comum, em debates sobre as relações entre cinema e política, que a gente se preocupe em dividir cinema versus política, como se críticos e pesquisadores fossem a trincheira última da defesa da forma contra o conteúdo”, disse Heitor Augusto, crítico e pesquisador, também integrante do Júri da Crítica este ano. Ele apontou para o fato de que, no cotidiano tanto de quem assiste rotineiramente a filmes quanto no de críticos e especialistas, ainda é pouco o cardápio de trabalhos realizados por cineastas verdadeiramente fora da margem. “No nosso dia a dia assistimos a poucos filmes dirigidos por negros e mulheres, para citar dois conjuntos de indivíduos à margem. No meu desconforto com posições universalistas que reconhecem as questões, mas pouco se movem para alterá-las, tenho o desejo de conhecer outros filmes, muitos deles invisibilizados ou com pouca atenção por parte do pensamento corrente”.

 A pesquisadora Patrícia Mourão propôs que, em vez de se falar de como o campo do cinema pode inserir as questões das minorias, devia-se inverter e pensar como o cinema pode se reinventar para espelhar essas questões. “A gente devia transbordar a ideia de reação para o como nós reagimos aos filmes urgentes nas suas falhas, nos seus esquematismos. Defender o lugar do dissenso, do encontro, do diálogo e da reflexão”, afirmou.

 Estes comentários se relacionaram diretamente a alguns dos debates mais intensos da Mostra, em especial sobre os filmes Baronesa, de Juliana Antunes, e Subybaya, de Leo Pyrata. Nos dois casos, muito se falou sobre representatividade, o papel da mulher na dramaturgia e nas articulações dos trabalhos e no feminismo como ferramenta de luta por igualdades de direitos e reação a abordagens estereotipadas. Muitas pessoas nas plateias dos Encontros com a Crítica, Diretor e Público apontaram aquilo que consideram limitações das formas de olhar de determinados tipos de filme e ideias sobre como isso poderia ser ajustado.

 “Não é um ato heroico filmar pessoas em situação de vulnerabilidade. Isso parte de uma vontade de não perpetuar o status quo”, apontou Pedro Perazzo, roteirista do curta Restos, que seguiu por alguns outros caminhos que surgiram nas conversas em Tiradentes: a representação do “outro de classe”, para usar um termo desenvolvido por Jean-Claude Bernardet. Vários filmes na Mostra trabalharam com aproximações e abordagens de personagens (reais ou fictícios) da periferia, das favelas e da margem das grandes cidades, como Baronesa, Corpo Delito, de Pedro Rocha, Tempos de Cão, de Ronaldo Dimer e Victor Amaro, e Eu não Sou Daqui, de Luiz Felipe Fernandes e Alexandre Baxter. Em todos, os limites entre o que mostrar e como mostrar foram colocados em questão. “Não dá para fazer um filme só pela estética. Vejo o cinema como transformador na medida em que ele possibilita vermos o mundo com recortes diferentes daqueles que nos chegam pelos meios tradicionais”, apontou Ana Carolina Soares, diretora do curta Estado Itinerante. Cléber Eduardo completa: “Um cinema consciente de que existe uma batalha de valores, de princípios e de modos existenciais do indivíduo e modos sociais coletivos em disputa”.

 A Mostra Aurora, completando sua primeira década, foi apontada como o retrato de uma nova geração de realizadores que, ao mesmo tempo em que iniciam seus trabalhos no cinema, também se solidificam muito rapidamente, graças à democratização dos meios de realização. “A importância da Aurora é que ela, de algum jeito, alimenta a todos nós, e a gente precisa de referenciais”, disse Bruno Safadi, o primeiro ganhador do Júri da Crítica, em 2008, com Meu Nome é Dindi. Pedro Diógenes, um dos diretores de Estrada para Ythaca, também ganhador da Aurora em 2010, destacou o papel centralizador desse recorte para alimentar o desejo por criar. “Meu tesão de fazer cinema está no processo, mesmo que a gente faça sem grana de edital, sempre arranjando outras formas de viabilização”.

 Se são 10 anos de Aurora, também se vão 20 anos de Mostra de Tiradentes, que cresceu junto com a própria solidificação do cinema brasileiro. De Central do Brasil (1998) aos filmes de hoje, essa história foi sendo escrita por festivais como este e pela ascensão das políticas públicas de fomento ao audiovisual, muitas delas concentradas na atuação de Manoel Rangel como presidente da Ancine (Agência Nacional do Cinema). Só em 2016, foram 143 longas-metragens brasileiros lançados em circuito comercial, fora as dezenas de outros realizados. “Foram investidos, nos últimos anos, em mais de 400 filmes e em centenas de séries de TV. A política pública do audiovisual existe”, destacou Rangel. “O país tem hoje 3.160 salas de exibição, com praticamente todas digitalizadas. O ‘cliente’ da política audiovisual, para usar um termo neoliberal, é o cidadão, é o indivíduo”.

 O professor André Gatti relativizou alguns destes apontamentos, dizendo que “o grande capital das empresas busca nos produtos de sucesso aquilo que lhe interessa”, o que inviabiliza a entrada de produções fora da margem num circuito tomado por esse tipo de “produto”. O produtor Cavi Borges completou: “É preciso reinventar não só os filmes, mas também as maneiras de como eles podem ser vistos”.

 Num ano de recordes internacionais, quando 13 filmes brasileiros estarão no Festival de Berlim, em fevereiro de 2017, o crítico argentino Roger Koza, convidado internacional da Mostra, destacou o quanto a visão do estrangeiro influencia a maneira como os trabalhos são vistos. “Os cineastas independentes dos países latinos reagem às situações políticas, alguns deles reproduzindo o que veem dessa violência”, disse Koza, que chamou de “estética da sordidez” a alguns enfrentamentos propostos pelas reações dos filmes ao estado das coisas.

 COMBATES NA TELA

 Muitas dessas reações puderam ser vistas diretamente nas telas de Tiradentes. Martírio, de Vincent Carelli, e Guerra do Paraguay, de Luiz Rosemberg Filho, se mostraram frontalmente como filmes de reação – o primeiro, tratando com detalhamento e escopo histórico o genocídio de povos indígenas no Brasil; o outro, friccionando a ficção para propor outras formas de dramaturgia e encenação. As discussões de gênero, machismo e preconceito, em polvorosa por praticamente todos os núcleos do país, estiveram no centro das atenções em filmes como Precisamos Falar do Assédio, de Paula Sacchetta, Subybaya, de Leo Pyrata, e Entre os Homens de Bem, de Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros, que trata do deputado federal Jean Wyllys.

 A resistência e a reação também estavam nas homenageadas desta edição: Leandra Leal e Helena Ignez. De gerações distintas, as duas guardam em comum o gosto pelo risco, pela ousadia e por caminharem em trilhas incertas, apostando no impacto de seus talentos e de suas presenças. Filmes como Divinas Divas, dirigido por Leandra, e Nome Próprio (2007), protagonizado por ela; e Ralé (2015) e Copacabana Mon Amour (1970), que trazem Helena em polos temporais distantes de sua trajetória, conectaram estas duas pontas. “Helena e Leandra são atrizes absolutamente mergulhadas para além da atuação, elas mesclam arte e vida”, disse o diretor Murilo Salles. Para Ruy Gardnier, crítico e pesquisador, o “furor libertador de Helena, sua experimentação, estão tão vivos quanto antes”, enquanto, para o crítico Daniel Schenker, a figura de Leandra guarda “um corpo em estado limite”.

 A memória foi outro elemento a surgir forte em alguns filmes exibidos em Tiradentes. O trabalho com o arquivo e a reconexão do passado com as questões do contemporâneo puderam ser vistos no longa Histórias que Nosso Cinema não Contava, no qual Fernanda Pessoa retorna às chamadas pornochanchadas dos anos 1970 para vislumbrar uma maneira alternativa de entender o regime militar; a televisão como reforçadora de pensamentos reacionários esteve no curta Autópsia, de Mariana Barreiros; e a importância de Antônio Pitanga na historiografia do cinema brasileiro teve em Pitanga, de Beto Brant e Camila Pitanga, um grande resgate e reconhecimento. A encenação como centro estético dos filmes se fez forte em Elon não Acredita na Morte, de Ricardo Alves Jr, A Cidade onde Envelheço, de Marília Rocha, e Lamparina da Aurora, de Frederico Machado: em todos estes, a preocupação formal se conectou às urgências de seus relatos.

 No dissenso, no bom combate, nas ideias e no compartilhamento de uma rede de afetos, a 20ª Mostra de Tiradentes teve o gosto especial do impacto. O cinema brasileiro é seu campo de batalha, e os filmes se transformam em armas de guerra para a resistência e a reação. A arte que valoriza a perturbação e as inquietações teve no evento espaço privilegiado, abrindo caminhos para que as frestas ganhem luzes e nos tragam cada vez mais estímulos e propostas.