A CineOP propõe reflexão sobre “Quem conta a História no cinema brasileiro?” como a Temática Histórica de 2017, buscando no passado da nossa produção as formas de olhar construídas ao longo das últimas décadas

Com a missão de debater o cinema como patrimônio e a preservação do audiovisual, a CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto anualmente propõe uma Temática Histórica que se conecte à trajetória da produção no país. Para a 12a edição, marcada para os dias 21 a 26 de junho, a escolha foi por discutir um questionamento: “Quem conta a História? Olhares e Identidades no Cinema Brasileiro”. A indagação está presente há décadas nos estudos e nas ideias da crítica e da pesquisa. As ficções e os documentários das últimas décadas dedicaram grande parte dos seus esforços na representação e relação com grupos, classes e culturas historicamente marginalizados e estigmatizados. Mas de onde vêm essas vozes?

A dupla de curadores Francis Vogner dos Reis e Lila Foster chegou à temática de 2017 a partir da constatação de que historicamente existe a preocupação de se olhar para o “outro lado”. “Sempre se disse que se filmava ‘o outro’, mas o ‘outro’ de quem? Quem elege esse outro? Se há um ‘outro’, há um ‘eu’. Tradicionalmente esse ‘eu’ são cineastas homens, intelectuais, de classes mais estabelecidas, diferente daqueles que eles filmavam. São eles que detinham o discurso sobre a realidade e as narrativas sobre a História”, apontam.

As questões levantadas pela curadoria tomaram grande dimensão nos debates contemporâneos, nos quais gênero, etnia e classe social passaram a ser pensados também nas relações estéticas e políticas da produção audiovisual. Diversos filmes passaram a abordar diretamente as complexidades sociais do país, assim como a mídia e os encontros acadêmicos têm chamado atenção a estes assuntos. Um dos primeiros trabalhos a se dedicarem às diferenças entre quem olha e quem é olhado no cinema brasileiro é o livro Cineastas e Imagens do Povo, de Jean-Claude Bernardet, publicado em 1985. Uma pergunta que atravessava o texto de Bernardet e diversos outros estudos posteriores é: De quem é o discurso sobre a realidade?. “A partir disso, completamos: de quem é a narrativa sobre a História? Como grupos historicamente fragilizados disputaram o imaginário sobre suas próprias culturas e realidade?”, dizem os curadores.

A proposta da Temática Histórica na 12ª CineOP é propor reflexão e exibição sobre filmes e cineastas importantes que romperam o bloqueio do tipo de produção hegemônica das suas épocas e também resgatar produções pioneiras que constituem a memória fundamental sobre a paisagem humana, cultural e social do Brasil, na sua força e contradições profundas. A curadoria pretende retornar a pensamentos canônicos, como textos de Paulo Emilio Sales Gomes, e a movimentos de grupo, como o Cinema Novo, para compreender de que maneiras eles construíram imagens da nação a partir de sugestões de como intervir na realidade e levantaram questões sobre alteridade e povo.

Pretende-se, com isso, abordar os olhares e as identidades construídas através dos anos pelo cinema brasileiro – que, como outras cinematografias, teve grupos fragilizados historicamente (mulheres, indígenas e afrodescendentes) representados quase majoritariamente por homens brancos. “Como o tema é complexo, a ideia é examinar com perspectiva histórica em filmes e debates que iluminem as afirmações, as contradições e os paradoxos do assunto”, concluem Francis Vogner e Lila Foster.

HOMENAGEM | CRISTINA AMARAL

Para receber a homenagem deste ano na CineOP em consonância com a temática “Quem conta a História?”, a Universo Produção celebra a carreira e os trabalhos da produtora e montadora Cristina Amaral. Sua vida e trajetória serão celebradas na noite de 22 de junho, na cerimônia de abertura da Mostra, no Cine Vila Rica, e em debates e filmes a serem apresentados durante toda a programação.

Parceira de vida e de trabalho de nomes como Carlos Reichenbach e Andrea Tonacci (de quem, aliás, foi companheira por anos), Cristina é considerada uma das mais importantes profissionais da montagem no cinema brasileiro nas últimas quatro décadas. Entre vários trabalhos, ela montou títulos como Alma Corsária (Carlos Reichenbach, 1993), A Voz e o Vazio: A Vez da Vassourinha (Carlos Adriano, 1998), Serras da Desordem (Andrea Tonacci, 2006), O Homem que não Dormia (Edgard Navarro, 2012), O Cego que Gritava Luz (João Batista de Andrade, 1996), A Hora Mágica (Guilherme de Almeida Prado, 1997), Sonhos Tropicais (André Sturm, 2001), Person (Marina Person, 2008), Garotas do ABC (Carlos Reichenbach, 2004), Falsa Loura (Carlos Reichenbach, 2008) e Já Visto Jamais Visto (Andrea Tonacci, 2014), além de muitos outros.

“Pensamos em homenagear alguém num tipo de função que não tinha sido celebrado ainda na CineOP e com grande importância na realização de um filme, deslocando a atenção de diretores e atores para um trabalho muitas vezes deixado à margem”, explica o curador Francis Vogner dos Reis. “A montagem é um elemento essencial porque ajuda a contar histórias e a organizar e dar sentido às imagens. Em boa parte dos filmes que vemos, inclusive trabalhos feitos a partir de arquivos, que têm presença forte na Mostra, o montador é quem, na parceria com a direção, vai lidar diretamente com aquelas imagens”.

O tributo a Cristina Amaral une todas as pontas. Além de profissional de altíssimo valor e reconhecimento no meio audiovisual, Cristina sempre se mostrou alguém de posturas firmes e ativas no mundo, não apenas no trato com o trabalho, mas com as relações que estabeleceu no cinema. “Ela defende a ideia de que não se trata de fazer cinema, mas também de viver a vida. Vindo de um montador, uma declaração dessas é formidável e comovente”, exalta Francis. “Ela sempre se envolveu muito fortemente com quem trabalhou, a ponto de ser uma coautora de seus trabalhos. Não é à toa que os cineastas cujos filmes ela montou continuaram querendo estar perto dela em seus trabalhos posteriores”.

Nascida em São Paulo em 1954, Cristina Amaral formou-se em Cinema na USP e começou sua experiência de montagem ainda na faculdade. O primeiro trabalho profissional como assistente de montagem se deu em Parada 88 – O Limite de Alerta (José de Anchieta, 1978), ficção científica por indicação de Chico Botelho, seu ex-professor na USP, que foi diretor de fotografia desse filme.  A busca por um estágio sobre efeitos e finalização a aproximou do montador Umberto Martins, com quem trabalhou  como assistente, durante quase um ano, em filmes de publicidade. 

O primeiro trabalho profissional  como montadora foi no curta Nós de Valor, Nós de Fato (Denoy de Oliveira, 1985). Dali adiante, enveredou por dezenas de trabalhos e se aproximou dos cineastas com quem se identificava afetiva e ideologicamente. “Se ela trabalhou com alguns de nossos cineastas mais radicais, é porque ela também é uma radical no seu ofício e na vida e representa, com sua presença, sua fala e seu trabalho, o nosso melhor cinema”, exalta a curadoria da Temática Histórica na CineOP.

Entre os filmes da Mostra Histórica estão Um é Pouco, Dois é Bom (1970), com direção de Odilon Lopez e primeiro longa-metragem brasileiro assinado por um cineasta negro; e A Primeira Missa ou Tristes Tropeços, Enganos e Urucum (2014), de Ana Carolina, uma das mais importantes realizadoras do cinema brasileiro e que, aqui, faz uma ficção satírica sobre a representação histórica de todo um imaginário nacional desde o período do Descobrimento.